Favela

déjàlu brasil
4 min readSep 15, 2021

Quando cheguei a Salvador, eu já estava casado e ainda vivia com meu cunhado, um garoto de catorze anos. Mais tarde, eu encontrei um ótimo emprego, pois tinha formação como ourives, falava bem em dois idiomas e conhecia bastante — para padrões brasileiros — gemologia, a parte da mineralogia que estuda as pedras de interesse para joalheria. Mas era bem ingênuo e desconhecia o valor que essa formação teria nas joalherias voltadas para turistas europeus e americanos, gente que pagava muito por pedras brasileiras, que são muito valorizadas no exterior.

No começo, por isso, eu trabalhava com meu outro cunhado numa serigrafia, pintando camisetas para turistas. Isso rendia pouquíssimo e nossa vida era menos que pobre, quase miserável. Por isso, o jeito que demos para viver por lá foi alugar um barraco numa das partes mais pobres da Boca do Rio — que já é um bairro proletário. Houve, tempos depois, um momento em que finalmente consegui emprego em uma joalheria e, seguindo a tradição, ocultava meu endereço para meus patrões, enquanto negociava valores altíssimos durante o dia e poupava moedas, à noite. Passei, sim, fome, nos primeiros tempos.

Mas eu queria falar mais sobre essa minha casa, onde vivi por algum tempo e nem sei exatamente porque, talvez para que você, que espero viva em condiçoes melhores, tire disso o que te interessar mais ou mais te convier.

A casa, vamos chamá-la assim, ficava uns vinte metros dentro da favela, e só se chegava a ela por um acesso de terra bem precário, que exigia alguma destreza física. Não era como essas passarelas que a gente vê nas favelas que as televisões filmam (certamente, existem piores). A construção, em si, reunia quatro habitações de famílias diferentes, umas entremeadas às outras, como num lego. A nossa era térrea e media uns dezoito, vinte metros. A gente entrava pela cozinha, fechada por um portão desses de jardim, de modo que para proteger a geladeira, foi preciso vedar a porta com uma dessas telas de galinheiro (ou algum vizinho talvez se interessasse por nossos suprimentos luxuosos). Essa cozinha media dois metros por meio. Era tão estreita que apelidamos de cozinha da encoxada. Se alguém estivesse na pia, tomava uma rolada de quem passasse. Na verdade, ficava era prensado contra a parede, mas, jovens, éramos magrinhos e gostávamos de brincar. Havia um fogão de duas bocas, meio metro de pia encardida e nenhuma janela — já que não tinha a porta. A sala da casa media oito metros (2x4) e também não tinha janela. Aliás, tinha. Para dentro da cozinha de um vizinho que nunca vimos, mas que apreciava demais sardinha frita, o que era meio sufocante. Deus é pai, vá feder lá longe. Nem respirar dava. A gente sentava ali no chão e via tv. O calor, mesmo à noite, excedia o do sol, sendo coisa de desmaiar. Um calor pavoroso, coisa que passava quarenta graus.

Meu cunhado dormia no chão e nós, numa cama de casal já meio magra como pastel seco. Como a temperatura caía à noite, o cheiro de um esgoto, um córrego denso de imundície, subia, de madrugada. O odor era tão ácido que eu vivia com as narinas queimando — mesmo, feria a mucosa — e sempre acordava com aquele fedor asfixiante. Os ratos também eram comuns, na cozinha, no quarto, bom, só havia esses cômdos, e depois de algum tempo, eu me habituei de tal modo às baratas, que eram como mosquitos. Dava mínima. De noite, elas vinham me fazer cócegas e eu as escoiceava, mal acordando. Caranguejos, que vinham do esgoto, à vezes eram vistos na pia, com um rastro de lama atrás de si. Minha mulher também acordava e mesmo sendo de origem bastante simples, filha de sargento, e de personalidade durona, muitas vezes chorava e eu a ouvia, no escuro.

Falta descrever o banheiro, que era comum para as quatro casas, nao tinha fecho na porta nem luz nem janela — um breu só e cuja água passava o dia gotejando, a afim de encher um desses tonéis de plastico azul. Quem chegasse primeiro — mais de vinte pessoas — tomava banho. Quem chegasse depois, tomava banho de água suja. Sim, era degradante, pois mais de uma vez vi gente nua ali e me viram também. Eu brincava, como a gente faz nessas situaçoes: gostou, paga dez; não gostou, paga vinte. Mas minha mulher se humilhava muito.

Diz o burguês que o comunismo é a miséria, a degradação, a perda dos valores, a redução do homem a uma criatura sem dignidade. Filho de soldado e dona de casa, dureza nunca foi novidade pra mim, mas eu não tinha vivido isso — não havia sentido na carne que essa moleza de não comer carne e tomar banho frio, é nada diante de todo um povo esfolado vivo, milhões, dezenas de milhões que conhecem bem, como sua única realidade, neste país, nas palafitas, favelas, mocambos, cortiços, becos, praças, calçadas, e nas margens dos grandes rios infectos e doentios ao extremo, piores que meu córrego de ratazana e caranguejo — o que me convenceu ainda mais que se o socialismo não é perfeito (obra humana, não poderia ser, mas é perfectível) o capitalismo dispensa censuras. Sua existência é sua mais severa e dura acusação e não lhe cabe qualquer defesa possível. Nenhuma. O capitalismo deve ser superado pela capacidade humana de se superar.

Se nossa existência, numa das parte mais pobres da Boca do Rio, foi um retrato mínimo da vida comum dos brasileiros que trabalham nesta terra, sobrevivendo a relações sociais tão brutais, sádicas, cruéis, eu não poderia deixar de concluir que nosso dever e direito como pessoas será derrotar essa forma de desumanizar as pessoas, de reduzir uma sociedade a uma abjeção em que uma minoria repulsiva oprime, submete um povo.

Reconheço que o assunto é trivial, que tudo isso é sabido, mas se deixarmos de falar disso, as coisas podem parecer aceitáveis, normais e poderemos nos conformar. Nossa união, em movimentos de base, partidos, o que for, é imprescindível, para que nossos senhores um dia temam, um dia tentem resistir, e um dia sejam derrotados pelo poder popular. Um dia, venceremos. Não se pode tergiversar, relativizar, atenuar os efeitos, inventar pretextos indecentes para a defesa do que contaria o que podemos ser como sociedade. Mas é preciso agir.

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